O homem; as viagens
O
homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.
espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.
COMENTÁRIO
No poema "O Homem; As Viagens", Drummond contrapõe
uma visão humanista à tecnocracia da corrida espacial.
Para os mais jovens, é interessante lembrar que os
anos 60 e pelo menos a primeira metade dos 70 foram marcados pela competição
entre os Estados Unidos e a União Soviética em muitos campos, inclusive na
exploração do cosmos, numa disputa que recebeu o nome de corrida espacial.
Não resta dúvida de que dessa corrida resultaram
importantes avanços científicos e tecnológicos. Mas a portentosa máquina de
propaganda americana utilizou extensamente as viagens ao espaço — e notadamente
a descida na Lua, em 1969 — como forma de demonstrar a superioridade de sua
tecnologia e de seus valores, assim como as maravilhas do estilo de vida na
terra do Tio Sam.
Neste poema, que foi inicialmente publicado como crônica
no Jornal do Brasil, Drummond mostra que, mais importante do que
chegar a Marte ou a qualquer outro mundo distante, o fundamental para a
humanidade é resolver os problemas da fome, da desigualdade e das injustiças
aqui mesmo.
Para isso, ele propõe que o ser humano faça uma
viagem de si a si mesmo e questione o que andamos fazendo com nossos
semelhantes e com nosso velho e maltratado
Centenário
do poeta: 31 de
outubro de 2002
Planeta Terra. Carlos Machado
03 05 2023 – 10:40Hs.
MAIS UM COMENTÁRIO
Publicada em 1973, no livro As
impurezas do branco, esse poema remete a dois componentes históricos
imediatos, os quais são estratégicos para a interpretação do mesmo: a viagem à
Lua, em 1969, e o desencadear do movimento ecológico. Este último, conforme
Marcos Reigotta (1999:34-35), tem como marco inicial ano de 1968, através de
protestos em diversos países. Neste mesmo ano, o Clube de Roma coloca o
problema ecológico como pauta central. E a seguir, em 1972, é realizada a
Conferência Mundial do Meio Ambiente Humano, conhecida como Conferência de
Estocolmo. Na poesia em análise, esses dois fatos parecem atuar como
desencadeadores do texto, sendo que o primeiro – a viagem à Lua – comparece de
maneira explícita, enquanto o segundo atua como possibilidade interpretativa.
Por tematizar a “viagem”, o referido
poema começa com uma alusão direta a Camões. Trata-se do primeiro verso “O
homem, bicho da Terra tão pequeno”, que repete as últimas palavras do primeiro
canto de Os Lusíadas. Citemos a estrofe final deste:
No mar tanta tormenta e tanto dano
Tantas vezes a morte apercebida
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida
Onde pode acolher-se um fraco humano
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?(CAMÕES, 1972: 35)
Observe-se a relação explícita entre
“Contra um bicho da terra tão pequeno?” (Camões) e “O homem, bicho da Terra tão
pequeno” (Drummond). Para além dessa relação literal, podemos observar que o 4º
verso da estrofe camoniana (“Tanta necessidade aborrecida”) atua como mote para
a descrição do desencanto do homem drummondiano frente a todas as suas
conquistas. Este homem “chateia-se na terra” (1ª estrofe, 2º verso),
“chateia-se na Lua” (2ª estrofe, 2º verso), julga Marte um “lugar quadrado” (4ª
estrofe, 1º verso)”, “idem” com relação a Vênus (5ª estrofe, versos finais),
irá “repetir a fossa” em Júpiter (6ª estrofe, 3º verso) e, ao chegar,
finalmente, ao Sol, exclamará “mas que chato é o Sol”(7ª estrofe, 8º
verso). Ainda, para sustentar o vínculo entre os dois autores, salientemos que,
no final da terceira estrofe do texto brasileiro, a expressão “com engenho e
arte” remete ao final da 2ª estrofe de Camões, “Cantando espalharei por toda a
parte/ se a tanto me ajudar o engenho e arte”. Neste caso, até a parceria
rítmica (parte/arte) é mantida, tendo em vista o 2º verso da 4ª estrofe de
Drummond, “Vamos a outra parte?”[†].
Qual é, porém, a mediação que há entre
um texto e outro? Consideremos, inicialmente, o ponto do texto em análise: “O
homem, bicho da Terra, tão pequeno”. Em primeiro lugar, cabe observar o detalhe
da maiúscula em “Terra” (Drummond) a diferenciar-se da designação minúscula
feita por Camões. Note-se que, em outros momentos do texto, quando se refere a
planeta, o autor português faz uso da maiúscula. Ocorre que, ao adjetivar o
homem como um bicho da terra, Camões não o faz no sentido planetário do termo.
A expressão guarda, ainda, uma conotação bíblica, remetendo ao barro original,
sendo também um designativo da infinita pequeneza e limitação humanas. Além
disso, o espaço restrito da natureza humana opõe-se ao céu e ao universo, mas
também se opõe ao mar, para onde se lança através das longas navegações. A
Terra (planeta) ainda não fora conquistada, não sendo o espaço familiar do ser
humano, como no tempo de Drummond. O tema camoniano inscreve-se nesse processo
de conquista e a pequenez humana remete ao quanto de errante, equivocado e
injusto esse processo representou.
Para o homem camoniano, a geografia
desconhecida assusta. E a grandeza do universo assume dimensão divina, tendo, a
conquista desse universo, o caráter de posse humana sobre o espaço mitológico.
De outro lado, o que se anuncia como humanização do espaço atua, em realidade,
como a europeização do mesmo. A empresa portuguesa, encimada pela cruz cristã,
viabiliza-se, do ponto de vista do conhecimento, através da ciência da escola
de Sagres, a qual, por sua vez, está articulada com o desenvolvimento
científico-tecnológico que povoa a Europa nesse momento. Inaugura-se a Era
Moderna, durante a qual o planeta rapidamente se tornará terra-a-terra,
caravelas e homens cruzarão continentes, povos serão dizimados e outros
transmigrados. Impérios sucederão a impérios, e a natureza será cada vez mais
estudada, conhecida, dominada e transformada para dar sustentação a esse modelo
de sociedade. Cabe considerar, neste sentido, que o que move essa empresa não é
somente sede de conhecimento ou aventura, o lado belo das navegações, mas,
principalmente, a voracidade por expansão das economias capitalistas nascentes.
Retomemos Leo Huberman:
As descobertas iniciaram um período de
expansão sem par, em toda a vida econômica da Europa ocidental. A expansão dos
mercados constituiu sempre um dos incentivos mais fortes à atividade econômica.
A expansão dos mercados, nessa época, foi maior do que nunca. Novas regiões com
que comerciar, novos mercados para os produtos de todos os países, novas
mercadorias a trazer de volta – tudo apresentava um caráter de contaminação e
estímulo e anunciou um período de intensa atividade comercial, de descobertas
posteriores, exploração e expansão. (HUBERMAN, 1981: 99)
Extraído de... e, para ler
mais: http://www.espacoacademico.com.br/083/83conceicao.htm
Acesso em 03122023, às
11:10Hs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário