Laços de Família
Clarice Lispector
Contos
Editora Rocco, 1998
Digitalizado, revisado e formatado
por Susana Cap
O texto de Clarice
Lispector costuma apresentar ilusória facilidade. Seu vocabulário é simples, as
imagens voltam-se para animais e plantas, quando não para objetos domésticos e
situações da vida diária, com freqüência numa voltagem de intenso lirismo. Mas
que não se engane o leitor. Em poucas linhas será posto em contato com um mundo
em que o insólito acontece e invade o cotidiano mais costumeiro, minando e corroendo
a repetição monótona do universo de homens e mulheres de classe média ou mesmo
o de seres marginais. Desse modo, o leitor defronta-se com a experiência de
Laura com as rosas e o impacto de Ana ao ver o cego no Jardim Botânico.
Pequenos detalhes do cotidiano deflagram o entrechoque de mundos e fronteiras,
que se tornam fluidos e erradios como o que é dado ao leitor a compreender acerca
da relação de Ana, seu fogão e seus filhos, ou das peregrinações de uma galinha
no domingo de uma família com fome, ou do assalto noturno de misteriosos mascarados
num jardim de São Cristóvão. E, como se pouco a pouco se desnudasse uma
estratégia, o cotidiano dos personagens de Laços de família, cuja primeira
edição data de 1960, vai-se desnudando como um ambiente falsamente estável, em
que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o
dia-a-dia parecia estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer.
Nesta coletânea de contos, as personagens -
sejam adultos ou adolescentes -debatem-se nas cadeias de violência latente que
podem emanar do círculo doméstico. Homens ou mulheres, os laços que os unem são,
em sua maioria, elos familiares ao mesmo tempo de afeto e de aprisionamento.
Clarice fixa nesta obra uma camada específica da sensibilidade pequeno-burguesa
figurada na tensão com as representações do poder, inconscientemente
internalizadas e tornadas institucionais. Como no texto de quem escreve por
lampejos, e sem a imediatez de uma literatura de compromisso social direto,
tudo isso ali está posto com a sutileza do artífice que afirma e nega,
oferecendo ao leitor um traço de machadiana obliqüidade na forma de escolher e
registrar os laços que acolhem e acossam seus personagens.
LÚCIA HELENA
Pós-Doutorada em
literatura Comparada pela Brown University, EUA e autora do livro Nem musa nem
medusa: Itinerários da escrita em Clarice Lispector.
NOTA PRÉVIA
Todo texto com tradição — tomada a palavra no sentido que a Crítica
Textual lhe empresta — tende a apresentar, nas reproduções que dele são feitas,
um maior ou menor número de alterações que vão, desde os erros cometidos por
distração de digitadores até as "correções" bem intencionadas de
revisores ou copidesques. Por isso, é necessário que se proceda ao
estabelecimento desse texto, procurando, no confronto com as edições publicadas
em vida do autor, restituir-lhe sua fidedignidade e genuinidade.
Clarice Lispector escrevia e
reescrevia seus textos, mas não se preocupava em guardar manuscritos e
originais, como se pode verificar no arquivo que se encontra na Fundação Casa
de Rui Barbosa, cujo inventário foi organizado por Eliane Vasconcellos, e
publicado em 1994.
De toda sua obra ficcional, só restou
um original datilografado: o de Água viva, a propósito do qual fala em carta a
Olga Borelli, mostrando como trabalhava exaustivamente o texto: "...Não
pude te esperar: estava morrendo de cansaço, porque estou trabalhando
ininterruptamente desde as cinco da manhã. Infelizmente eu é que tenho que
fazer a cópia de Atrás do pensamento, sempre fiz a última cópia dos meus livros
anteriores porque cada vez que copio vou modificando, acrescentando, mexendo
neles, enfim' (grifo nosso).
No entanto, depois de encaminhar o texto à editora, Clarice não se
interessava mais por ele, conforme declara em entrevista concedida a Affonso
Romano de Sant*Anna e Marina Colasanti, para o Museu da Imagem e do Som, em 20
de outubro de 1976: "Affonso — Você tem os seus textos escritos na cabeça.
E uma vez você me disse uma coisa impressionante: você nunca relê um texto seu.
Clarice — Não. Enjôo. Quando é publicado, é como livro morto. Não quero
mais saber dele. E quando eu leio, estranho, acho ruim. Aí não leio, ora!"
Olga Borelli, grande amiga e companheira
de Clarice Lispector, com quem conversamos recentemente, nos assegurou que, de
fato, Clarice não revia seus textos depois que encaminhava os originais à
editora.
Assim, não é
possível trabalhar com textos de Clarice Lispector, ignorando-se o fato de que
não os revia e, portanto, não fazia mudanças de uma edição para outra. No
preparo desta edição, elegemos como texto de base o da primeira, publicada em
1960, pela Francisco Alves.
Laços de família teve oito edições em vida da autora: a 2ª (1961),
pela mesma editora da 1ª; a 3ª (1965), pela Editora do Autor; a 4ª (1970), a 5ª
(1973) e a 6ª (1974), pela Editora Sabiá; a 7ª (1976) e a 8ª (1977), pela Editora
José Olympio. Ainda há uma edição datada de 1974, publicada pela Editora Três,
de São Paulo, que nos parece ser uma contrafação.
Marlene Gomes
Mendes
O livro completo
é composto pelos contos:
Sumário
DEVANEIO
E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA
AMOR
UMA
GALINHA
A
IMITAÇÃO DA ROSA
FELIZ
ANIVERSÁRIO
A
MENOR MULHER DO MUNDO
O
JANTAR
PRECIOSIDADE
OS
LAÇOS DE FAMÍLIA
COMEÇOS
DE UMA FORTUNA
MISTÉRIO
EM SÃO CRISTÓVÃO
O
CRIME DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA
O
BÚFALO
Do livro extraímos apenas o que é
conteúdo do PAS/UnB 3ª ETAPA
Amor – Conto de Clarice
Lispector
Um pouco cansada, com as compras
deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo
e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num
suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa
verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados,
instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão
enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos
poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara
lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo
horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não
outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o
cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos,
crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de
fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente,
sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa.
Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais
precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que
nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas
para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo
vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias
realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e
suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de
aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida
podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera
necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe
dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa
de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem
verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude
anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos
emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a,
encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem
trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes
de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada
que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca
algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o
escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar
cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais
dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando
os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida
não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com
a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para
fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à
revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do
colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De
manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo
empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia
obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava
anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava
em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da
tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande
aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida
estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o
homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é
que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era
um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se
aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela
viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um
segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado.
Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele
mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da
mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e
deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a
visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada
vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida
para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu
um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o
bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas
compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada,
ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos
jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho
de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego
interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente
pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os
sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de
partida.
Poucos instantes depois já não a
olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara
atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os
dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num
bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como
uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê?
Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.
Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de
sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um
mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus
próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se
mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a
falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.
Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser
revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E
sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada.
O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas.
Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as
grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles
mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência
de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto
dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na
calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os
dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara
tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão,
separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem
usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a
que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso.
E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara
do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um
susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a
rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado
no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos,
amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os
arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais
morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim
pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os
portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda
central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os
embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o
silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era
clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos,
cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado
pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo
qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho,
suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a
sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia
central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso,
desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se
balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de
repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no
Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas,
doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como
pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com
suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as
luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato
era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um
mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os
troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado.
Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha
nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo
era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens
grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida
e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele,
estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde
vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não
lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A
decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com
a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do
mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o
seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia
cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana
aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças,
diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor.
Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase
corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba.
Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia
apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do
edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua
alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta
como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta
de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros
da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um
instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco
de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e
rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto.
Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o
que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada
pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade
lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como
se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele,
a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é
horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego?
Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava
deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os
braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou
aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A
criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do
quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q
sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os
dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela
forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra.
E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais
piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de
viver.
Já não sabia se estava do lado do cego
ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela
parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim
Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à
parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta?
Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego
me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum
pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que
uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu
coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria
um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim
Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o
cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que
se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi
para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio.
Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando
em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando
a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e
asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto
da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga.
O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os
besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida
silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na
cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em
torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era
tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava,
o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos
e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas,
no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter
usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas,
brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir.
Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar,
enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa,
a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver
defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam
admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante
entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as
crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela.
A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus
dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e
pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que
da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O
cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já
teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o
seu marido diante do café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher.
E de repente riu entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um
desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana,
espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada,
nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o
fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus
braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia
um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que
não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a
consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu
inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo
no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena
flama do dia.
Texto extraído do livro “Laços
de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, incluído entre “Os cem
melhores contos brasileiros do século”.
Digitalizado, revisado e formatado por Susana Cap
Copiado de: WWW.PORTALDETONANDO.COM.BR/FORUMNOVO/
Acesso em 01/04/2016 10:45Hs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário