sábado, 29 de junho de 2024

Seleção de Poemas de Gregório de Matos Guerra.

SELEÇÃO DE POEMAS
GREGÓRIO DE MATOS GUERRA
Soneto
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.

Epílogos
Que falta nesta cidade?...................................Verdade
Que mais por sua desonra ..............................Honra
Falta mais que se lhe ponha ...........................Vergonha.
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.
Quem a pôs neste socrócio?.................................. Negócio
Quem causa tal perdição? ................................ Ambição
E o maior desta loucura?................................. Usura.
Notável desaventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Quais são os seus doces objetos?....................... Pretos
Tem outros bens mais maciços?........................ Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...................... Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.
Quem faz os círios mesquinhos?......................... Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas? ...........................Guardas
Quem as tem nos aposentos? ........................... Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.
E que justiça a resguarda? ................................ Bastarda
É grátis distribuída? ......................................... Vendida
Que tem, que a todos assusta?............................ Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
Que vai pela clerezia? ........................................ Simonia
E pelos membros da Igreja? ............................. Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?......................... Unha.
Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.
E nos Frades há manqueiras?........................... Freiras
Em que ocupam os serões? .............................. Sermões
Não se ocupam em disputas?............................ Putas.
Com palavras dissolutas
me concluis na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.
O açúcar já se acabou?..................................... Baixou
E o dinheiro se extinguiu?............................... Subiu
Logo já convalesceu? .......................................... Morreu.
À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.
A Câmara não acode?...................... ............... Não pode
Pois não tem todo o poder?.............................. Não quer
É que o governo a convence? .............,............. Não vence.
Quem haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.
Mote
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.
Glosa
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem Digesto, e Colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer, que esta terra
De dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de preverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.

Provo a conjetura já
prontamente como um brinco;
Bahia tem letras cinco
que são BAHIA:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.

Soneto
Triste Bahia! oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio, e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brochote.'

Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

À Bahia
Tristes sucessos, casos lastimosos,
Desgraças nunca vistas, nem faladas,
São, ó Haia! vésperas choradas
De outros que estão por vir mais estranhos:

Sentimo-nos confusos, e teimosos,
Pois não damos remédio às já passadas,
Nem prevemos tampouco as esperadas,
Como que estamos delas desejosos.

Levou-vos o dinheiro a má fortuna,
Ficamos sem tostão, real nem branca,
Macutas, correão, novelos, molhos:

Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,
E é que, quem o dinheiro nos arranca,
Nos arranca as mãos, a língua, os olhos.

Romance
Senhora Dona Bahia,
nobre e opulenta cidade,
madrasta dos Naturais,
e dos Estrangeiros madre.
Dizei-me por vida vossa,
em que fundais o ditame
de exaltar os que aí vêm,
e abater os que ali nascem?
Se o fazeis pelo interesse,
de que os estranhos vos gabem,
isso os Paisanos fariam
com duplicadas vantagens.
E suposto que os louvores
em boca própria não cabem,
se tem força esta sentença,
mor força terá a verdade.

O certo é, Pátria minha,
que fostes terra de alarves,
e inda os ressaibos vos duram
desse tempo, e dessa idade.
Haverá duzentos anos,
(nem tantos podem contar-se)
que éreis uma aldeia pobre,
e hoje sois rica cidade.
Então vos pisavam Índios,
e vos habitavam cafres,
hoje chispais fidalguias,
arrojando personagens.
A essas personagens vamos,
sobre elas será o debate,
e queira Deus, que o vencer-vos
para envergonhar-vos baste.
Sai um pobrete de Cristo
de Portugal, ou do Algarve
cheio de drogas alheias
para daí tirar gages."
O tal foi sota-tendeiro
de um cristão-novo em tal parte,
que por aqueles serviços
o despachou a embarcar-se.
Fez-lhe uma carregação
entre amigos, e compadres:
e ei-lo comissário feito
de linhas, lonas, beirames.
Entra pela barra dentro,
dá fundo, e logo a entornar-se
começa a bordo da Nau
cum vestidinho flamante.
Salta em terra, toma casas,
arma a botica dos trastes,
em casa come Baleia,
na rua entoja manjares.
Vendendo gato por lebre,
antes que quatro anos passem,
já tem tantos mil cruzados,

segundo afirmam Pasguates.
Começam a olhar para ele
os Pais, que já querem dar-1he
Filha, e dote, porque querem
homem, que coma, e não gaste.
Que esse mal há nos mazombos,
têm tâo pouca habilidade,
que o seu dinheiro despendem
para haver de sustentar-se.
Casa-se o meu matachim,"
põe duas Negras, e um Pajem,
uma rede com dous Minas,
chapéu-de-sol, casas-grandes.
Entra logo nos piloros,
e sai do primeiro lance
Vereador da Bahia,
que é notável dignidade.
Já temos o Canastreiro,
que inda fede a seus beirames,
metamorfoses da terra
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem.
Vem outro do mesmo lote
tão pobre, e tão miserável
vende os retalhos, e tira
cornissão com couro, e carne.
Co principal se levanta,
e tudo emprega no Iguape,
que um engenho, e três fazendas
tem feito homem grande;
e eis aqui a personagem.
Dentre a chusma e a canalha
da marítima bagagem
fica às vezes um cristão
que apenas benzer-se sabe:
Fica em terra resoluto
a entrar na ordem mercante,
troca por côvado, e vara

timão, balestilha, e mares.
Arma-lhe a tenda um ricaço,
que a terra chama Magnate
com pacto de parceria,
que em direito é sociedade:
Com isto a Marinheiras
do primeiro jacto, ou lance
bota fora o cu breado,
as mãos dissimula em guantes.
Vende o cabedal alheio,
e dá com ele em Levante,
vai, e vem, e ao dar das contas
diminui, e não reparte.
Prende aqui, prende acolá,
nunca falta um bom Compadre,
que entretenha o credor,
ou faça esperar o Alcaide.
Passa um ano, e outro ano,
esperando, que ele pague,
que uns lhe dão, para que junte,
e outros mais, para que engane.
Nunca paga, e sempre come,
e quer o triste Mascate,
que em fazer a sua estrela
o tenham por homem grande.
O que ele fez, foi furtar,
que isso faz qualquer bribante,
tudo o mais lhe fez a terra
sempre propícia aos infames
e eis aqui a personagem.
Vem um Clérigo idiota,
desmaiado com um jalde,
os vícios com seu bioco,
com seu rebuço as maldades:
Mais Santo do que Mafoma

na crença dos seus Árabes,
Letrado como um Matuto,
e velhaco como um Frade;
ontem simples sacerdote,
hoje uma grã dignidade,
ontem selvagem notório,
hoje encoberto ignorante.
Ao tal Beato fingido
é força, que o povo aclame,
e os do governo se obriguem,
pois edifica a cidade.
Chovem uns, e chovem outros
com ofícios, e lugares,
e o Beato tudo apanha
por sua muita humildade.
Cresce em dinheiro, e respeito,
vai remetendo as fundagens,
compra toda a sua terra,
com que fica homem grande,
e eis aqui a personagem.
Vêm outros zotes de Réquiem,
que indo tomar o caráter
todo o Reino inteiro cruzam
sobre a chanca viandante.
De uma província para outra
como Dromedários partem,
caminham como camelos,
e comem como selvagens:
Mariolas de missal,
lacaios missa-cantante
sacerdotes ao burlesco
ao sério ganhões de altares.
Chega um destes, toma amo,
que as capelas dos Magnates
são rendas, que Deus criou
para estes Orate fratres.
Fazem-lhe certo ordenado,
que é dinheiro na verdade,

que o Papa reserva sempre
das ceias, e dos jantares.
Não se gasta, antes se embolsa,
porque o Reverendo Padre
é do Santo Nicomedes
meritíssimo confrade;
e eis aqui a personagem.
Vêem isto os Filhos da terra,
e entre tanta iniquidade
são tais, que nem inda tomam
licença para queixar-se.
Sempre vêem, e sempre falam,
até que Deus Ihes depare,
quem lhes faça de justiça
esta sátira à cidade.
Tão queimada, e destruída
te vejas, torpe cidade,
como Sodoma, e Gomorra
duas cidades infames.
Que eu zombo dos teus vizinhos,
sejam pequenos, ou grandes
gozos, que por natureza
nunca mordem, sempre latem.
Que eu espero entre Paulistas
na divina Majestade,
Que p ti São Marçal te queime,
e São Pedro assim me guarde.


Décimas

Toda a cidade derrota
esta fome universal,
uns dão a culpa total

à Câmara, outros à frota:
a frota tudo abarrota
dentro nos escotilhões
a carne, o peixe, os feijões,
e se a Câmara olha, e ri,
porque anda farta até aqui,
é cousa, que me não toca;
Ponto em boca.

Se dizem, que o Marinheiro
nos precede a toda a Lei,
porque é serviço d'El-Rei,
concedo, que está primeiro:
mas tenho por mais inteiro
o conselho, que reparte
com igual mão, igual arte
por todos, jantar, e ceia:
mas frota com tripa cheia,
e povo com pança oca!
Ponto em boca,

A fome me tem já mudo,
que é muda a boca esfaimada;
mas se a frota não traz nada,"
por que razão leva tudo?
que o Povo por ser sisudo
largue o ouro, e largue a prata
a uma frota patarata,
que entrando co'a vela cheia,
o lastro que traz de areia,
por lastro de açúcar troca!
Ponto em boca.
Se quando vem para cá,
nenhum frete vem ganhar,
quando para lá tornar,
o mesmo não ganhará;
quem o açúcar lhe dá,
perde a caixa, e paga o frete,
porque o ano não promete
mais negócio, que perder
o frete, por se dever,
a caixa, porque se choca:
Ponto em boca.

Entretanto eu sem abrigo,
e o povo todo faminto
ele chora, e eu não minto,
se chorando vo-lo digo:
tem-me cortado o umbigo
este nosso General,
por isso de tanto mal
lhe não ponho alguma culpa;
mas se merece desculpa
o respeito, a que provoca,
Ponto em boca.

Com justiça pois me torno
à Câmara Nó Senhora,
que pois me trespassa agora,
agora leve o retorno:
preza a Deus, que o caldo morno
que a mim me fazem cear
da má vaca do jantar
por falta do bom pescado
lhe seja em cristais lançado;
mas se a saúde 1hes toca:
Ponto em boca.


Décimas

Uma cidade tão nobre,
uma gente tão honrada
veja-se um dia louvada
desde o mais rico ao mais pobre:
cada pessoa o seu cobre,
mas se o diabo me atiça,
que indo a fazer-lhe justiça,
algum saia a justiçar,
'não me poderão negar,
que por direito, e por Lei
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Fidalgo de solar
se dá por envergonhado
de um tostão pedir prestado
para o ventre sustentar:
diz, que antes o quer furtar
por manter a negra honra,
que passar pela desonra,
de que Ihe neguem talvez;
mas se o virdes nas galés
com honras de Vice-Rei,
esta é a justiça, que manda El-Rei.

A Donzela embiocada
mal trajada, e mal comida,
antes quer na sua vida
ter saia, que ser honrada:
à pública amancebada
por manter a negra honrinha,
e se lho sabe a vizinha,
e lho ouve a clerezia
dão com ela na enxovia,
e paga a pena da lei;
esta é a justiça, que manda El-Rei.

A casada com adorno,
e o Marido mal vestido,
crede, que este tal Marido
penteia monho de corno:
se disser pelo contorno,
que se sofre a Fr. Tomás,
por manter a honra o faz,
esperai pela pancada,
que com carocha pintada
de Angola há de ser Visrei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.

Os Letrados Peralvilhos
citando o mesmo Doutor
a fazer de Réu, o Autor
comem de ambos os carrilhos:
se diz pelos corrilhos
sua prevaricação,
a desculpa, que lhe dão,
é a honra de seus parentes,
e entonces os requerentes,
fogem desta infame grei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Clérigo julgador,
que as causas julga sem pejo,
não reparando, que eu vejo,
que erra a Lei, e erra o Doutor:
quando vêem de Monsenhor
a Sentença Revogada
por saber, que foi comprada
pelo jimbo, ou pelo abraço,
responde o Juiz madraço,
minha honra é minha Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Mercador avarento,
quando a sua compra estende,
no que compra, e no que vende,
tira duzentos por cento:
não é ele tão jumento,
que não saiba, que em Lisboa
se lhe há de dar na gamboa;
mas comido já o dinheiro
diz, que a honra está primeiro,
e que honrado a toda Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A viúva autorizada,
que não possui um vintém,
porque o Marido de bem
deixou a casa empenhada:
ali vai a fradalhada,
qual formiga em correição,
dizendo, que à casa vão
manter a honra da casa,
se a virdes arder em brasa,
que ardeu a honra entendeis:
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Adônis da manhã,
o Cupido em todo o dia,
que anda correndo a Coxia
com recadinhos da Irmã:
e se 1he cortam a 1ã,
diz, que anda naquele andar
por a honra conservar
bem tratado, e bem vestido,
eu o verei tão despido,
que até as costas lhe verei;
esta é a justiça, que manda El-Rei.

Se virdes um Dom Abade
sobre o púlpito cioso,
não lhe chameis Religioso,
chamai-lhe embora de Frade:

e se o tal Paternidade
rouba as rendas do Convento
para acudir ao sustento
da puta, como da peita,
com que livra da suspeita
do Geral do Viso-Rei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.


Romance

Deste castigo fatal,
que outro não vemos, que iguale,
serei Mercúrio das penas,
e Coronista dos males.
Tome esta notícia a Fama,
para que voe, e não pare,
e com lamentáveis ecos
soe numa, e noutra parte.
Ano de mil, e seis centos
oitenta e seis, se contar-se
pode por admiração,
escutem os circunstantes.
Chegou a morte à Bahia,
não cuidando, que chegasse,
aqueles, que não temiam
seus golpes por singulares.
Representou-nos batalha
com rebuços no disfarce,
facilitando a peleja
para segurar o saque.
Mas tocando a degolar
levou tudo a ferro, e sangue
divertindo a medicina
com variar os achaques.
Fez estrago tão violento
em discretos, ignorantes,
em pobres, ricos, soberbos,
que nenhum pode queixar-se.
Ao discreto não valeram
seus conceitos elegantes,
nem ao néscio o ignorar,
que ofensas hão de pagar-se.
Ao rico não reparou
de seu poder a vantagem,
nem ao soberbo o temido,
nem ao pobre o humilhar-se.
Ao galante o ser vistoso,
nem ao polido o brilhante,
nem ao rústico descuidos,
de que a vida há de acabar-se.
E se algum quis de manhã
rosa brilhante ostentar-se,
chegava a morte, e se via
funesta pompa de tarde.
Emudeceu as folias,
trocou em lamento os bailes,
cobriu as galas de luto,
encheu de pranto os lugares.
Foi tudo castigo em todos
por esta, e aquela parte,
se aos pobres faltou remédio,
aos ricos sobraram males.
Para o sexo feminino
veio a morte de passagem,
deixando-lhe, no que via
exemplo para emendar-se.
Nos inocentes de culpa
foi a morte relevante,
que tanto a inocência livra,
                                                                                     quanto condena o culpável.                                                            Pela caterva Etiópia
passou tocando rebate,
mas corpos, que pagam culpas,
não é bem, que à vida faltem.
Já se via pelas ruas
de porta em porta chegar-se
um devoto Teatino
intimando a confessar-se.
Quem para a morte deixara
negócio tão importante,
porque as lembranças da vida
negam da morte o lembrar-se.
Os campanários se ouviam
uma hora em outra dobrarem,
despertadores da morte,
porque aos vivos lhe lembrasse.
Fez abrir nos cemitérios
em um dia a cada instante
para receber de corpos,
o que tinham de lugares.
Foi tragédia lastimosa,
em que pode ponderar-se,
que a terra sobrando a muitos,
se viu ali, que faltasse.
Os que nela não cabiam,
quando vivos, hoje cabem
numa sepultura a três,
quero dizer a três pares.
Viam-se as enfermarias
de corpos tão abundantes,
que sobrava a diligência,
para que a todos chegassem.
O remédio para as vidas
era impossível achar-se,
porque o número crescia
cada minuto, e instante.
Titubeava Galeno
com a implicância dos males,
porque o tributo das vidas,
mandava Deus, que pagassem.
O Senhor Marquês das Minas,
que Deus muitos anos guarde,
zeloso como cristão,
liberal como Alexandre;
Preveniu para a saúde,
Para que em tudo acertasse,
dividirem-se os enfermos
por casas particulares.
Este zelo foi motivo,
de que todos por vontade
(digo os possantes) mostraram,
serem próximos amantes.
Havia um novo hospital,
onde se admirou notável
o zelo de uma Senhora
Dona Francisca de Sande:
Mostrando como enfermeira
o desvelo em toda a parte,
e administrando a mezinha,
a quem devia de dar-se.
Consolando a quem gemia,
animando os circunstantes,
tolerando o sentimento
de que assim não acertasse.
Não reparando nos gastos
da fazenda, que eram grandes,
porque só quis reparar
vidas, por mais importantes.
O Marquês como Senhor
quis em tudo avantajar-se,
abrindo para a pobreza
os tesouros da vontade.
Repartia pelos pobres
esmolas tão importantes,
que o seu zelo nos mostrava
querer, que nada faltasse.
Publicando geralmente,
que a ele os pobres chegassem,
porque ao remédio de todos
sua Excelência não falte.
Mas se estava Deus queixoso,
que muito passasse avante
este castigo de culpas,
mais que inclemência dos ares.
Finalmente que a Bahia
chegou a extremo tão grande,
que aos viventes parecia
querer o mundo acabar-se.
Punha a morte cerco às vidas
tão cruel, e exorbitante,
que em três meses sepultou
da Bahia a maior parte.
Ah Bahia! bem puderas
de hoje em diante emendar-te,
pois em ti assiste a causa
de Deus assim castigar-te.

                                                                                    Mostra-se Deus ofendido,                                                                                                                                                                            nós sem desculpa que dar-lhe;                                                                                                                                                           emendemos nossos erros,                                                                                  que Deus porá termo aos males.


*soneto

Por entre o Beberibe, e o Oceano
Em uma areia sáfia, e lagariça
Jaz o Recife povoação mestiça,
Que o Belga edificou ímpio tirano.

O Povo é pouco, e muito pouco urbano,
Que vive à mercê de uma lingüiça,
Unha de velha insípida enfermiça,
E camarões de charco em todo o ano.

As Damas cortesãs, e por rasgadas
Olhas podridas, são, e pestilências,
Elas com purgações, nunca purgadas.

FIM
Copiado de: Domínio Publico - www.nead.unama.br

Acessado em 12/11/2013 e Atualizado em 04/10/23.

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